REFORMA MUDA LEIS SEM RELAÇÃO COM PREVIDÊNCIA, CORTA PIS E REMÉDIOS DO SUS
(Reportagem: Lucas Borges Teixeira; edição: Armando Pereira Filho)
Colaboração para o UOL, em São Paulo
24/04/2019
Um acordo de última hora retirou quatro pontos polêmicos da reforma da Previdência ainda na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça). Mas por que esses pontos causaram problemas? E nem todos os itens controversos, que não têm relação com a Previdência, foram retirados.
A reforma apresentada pelo governo Bolsonaro muda até questões que não impactam diretamente no rombo previdenciário, como fim do direito ao FGTS e à multa de 40% para aposentados. Isso foi retirado no acordo, mas outros pontos continuam, como redução no número de pessoas que recebem o abono salarial do PIS e até restrição da distribuição grátis de remédios caros por decisão judicial, se não houver verba. Analistas criticam a inclusão de temas fora da pauta da Previdência.
Entenda os pontos que foram tirados e outros
O acordo anunciado na terça-feira retirou os seguintes pontos da reforma:
- Fim do FGTS para aposentados que trabalham
- Possibilidade de alterar a idade de aposentadoria compulsória de ministros do STF
- Mudança no foro para julgamento de ações contra o INSS
- Exclusividade do Executivo em propostas para mudar a Previdência
Nada disso tinha relação com o déficit da Previdência em si. Veja em detalhes esses pontos retirados e outros que ainda continuam na PEC:
– Fim de FGTS e multa de 40% para trabalhador aposentado (item retirado após acordo)
Hoje o funcionário da iniciativa privada que se aposenta e continua trabalhando tem direito a FGTS como qualquer outro empregado. Se for demitido sem justa causa, a empresa precisa pagar a multa de 40%. A reforma propunha o fim do recolhimento do FGTS para o aposentado que começasse a trabalhar depois que a reforma entrar em vigor, enquanto a multa cairia no momento.
– Aposentadoria compulsória no STF (item retirado após acordo) A reforma propunha que a idade máxima para a aposentadoria compulsória de funcionários públicos seja definida por lei complementar e não por emenda constitucional, como é hoje. Isso possibilitaria ao governo Bolsonaro indicar mais dois ministros do STF. Uma regra anterior (a PEC da Bengala) subiu a idade máxima de aposentadoria compulsória de 70 anos para 75 anos em 2015, articulada pela oposição ao governo Dilma Rousseff para que ela não indicasse mais dois magistrados. Agora, a bancada governista quer reverter a situação.
– Previdência mudada só pelo governo (item retirado após acordo)
As mudanças nas regras previdenciárias poderiam ser feitas por projeto de lei, o que deixaria o governo com a iniciativa dessas mudanças, em vez do Congresso.
– Julgamento de ações contra o INSS (item retirado após acordo)
A reforma propunha que ações contra o INSS, no caso de acidente de trabalho, por exemplo, saíssem da Justiça estadual e fossem para a federal. Isso dificultaria o acesso a moradores do interior do país, pois as varas federais estão concentradas em grandes centros urbanos.
– Abono do PIS/Pasep só para quem ganha até um salário mínimo (item continua na reforma)
Hoje o abono salarial do PIS/Pasep é pago para quem ganha até dois salários mínimos. A reforma propõe que o benefício anual deve ser pago só para quem ganha até um salário mínimo por mês. Com a mudança, 23,4 milhões de trabalhadores devem perder o direito ao benefício, que chega a R$ 998 por ano.
– Restrição na distribuição de remédios via decisão judicial (item continua na reforma)
A proposta altera o artigo 195 da Constituição, que trata do orçamento da seguridade social. Entre as mudanças, acrescenta que nenhum benefício ou serviço poderá ser criado ou estendido “por ato administrativo, lei ou decisão judicial, sem a correspondente fonte de custeio total”. Isso pode impactar diretamente na concessão de medicamentos pelo SUS (Sistema Único de Saúde) via decisões judiciais, pois o Judiciário ficaria impedido de prover ou ampliar um benefício sem que haja uma fonte de custeio.
– Fim de exigências eleitorais acerca de bombeiros e policiais militares (item continua na reforma)
A lei atual diz que, se um militar tiver menos de dez anos de serviço e almeja a vida pública, deve se afastar da atividade. Para o STF (Supremo Tribunal Federal), esse afastamento é definitivo. Se ele tiver mais de dez anos de serviço, é afastado temporariamente e, caso eleito, vira inativo com sua diplomação pela Justiça Eleitoral. A PEC propõe eliminar o artigo 42 da Constituição, que diz que esta regra vale também para policiais militares e bombeiros dos estados e do Distrito Federal.
Não é moral, mas também não é inconstitucional
Embora a legislação brasileira não considere uma “boa prática” tratar de assuntos diferentes do principal dentro de uma mesma proposta de lei, a manobra usada pelo governo não é inconstitucional.
“Pode não ser o mais indicado, ainda mais quando se trata de um projeto tão relevante, mas também não é proibido”, afirmou João Badari, advogado especialista em direito previdenciário.
“A lei permite porque a proposta é enviada ao Congresso para debate antes de entrar em vigor, o que, teoricamente, cria mecanismos de controle para este tipo de manobra”, disse Rubens Glezer, professor de Direito Constitucional da FGV-SP (Fundação Getúlio Vargas de São Paulo).
A prática é diferente, por exemplo, de uma medida provisória (MP). Nesta, é proibido por lei que se trate de assuntos que não são diretamente relacionados ao principal.
“A MP vem da Presidência e tem força de lei imediata sem passar por um debate. Por isso, considera-se transgressão das medidas democráticas [incluir jabutis]. A PEC ainda passa pelo debate”, afirmou Glezer.
Propostas criam problemas para aprovação da reforma
Especialistas ouvidos pelo UOL avaliam que a inclusão de temas sem relação com a reforma não foi uma boa estratégia porque criou um problema a mais com o Congresso e a opinião pública.
“Se um governo articula mal, e o governo Bolsonaro tem se mostrado um articulador ineficiente, as coisas não acontecem como ele deseja”, afirmou Rodrigo Prando, cientista político da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Para Glezer, trata-se ou de um “equívoco estratégico” ou de uma “decisão desleal”.
“Uma estratégia ruim porque a reforma já é de difícil consenso. Ao acrescentar estes artigos, você aumenta o nível de negociação, inclusive entre a opinião pública”, afirmou Glezer. “Mas, se o governo enfia artigos na legislação supondo que ninguém vai ver, isso é desleal com a população.”
“Seja para passar despercebido seja para ter mais poder de barganha, o governo se mostra um pouco míope sobre o papel do diálogo entre Executivo e Legislativo”, disse Prando. “É mais um obstáculo para algo que poderia se encaminhar de forma um pouco mais tranquila.”
Governo diz que apresentou temas “correlatos”
Para a Secretaria da Previdência, os pontos questionados pelo UOL são “correlatos” à reforma, embora não sejam diretamente relacionados à concessão dos benefícios previdenciários. O governo respondeu sobre os pontos identificados:
Fim da multa de 40% do FGTS: Neste caso, a secretaria argumenta que medida tem “efeito previdenciário”, porque tende a “estimular a postergação da decisão de aposentadoria para segurados que têm condições de continuar trabalhando”.
Mudança na regra eleitoral para agentes de segurança pública: Segundo a secretaria, a alteração no art. 42 continua a alçar as regras eleitorais aos militares, inclusive policiais e bombeiros. No entanto, órgão não explicou por que o artigo foi modificado, se na prática não haverá impacto, e o que ela tem a ver com a Previdência.
Aposentadoria compulsória por lei complementar: O governo informou que não só a aposentadoria compulsória seria disciplinada via lei complementar, como as aposentadorias por incapacidade permanente e voluntária. “Está dentro do objetivo da PEC de desconstitucionalizar as regras, conforme amplamente divulgado. Cabe lembrar que, desde a Emenda Constitucional nº 88/2015, existe referência à lei complementar na aposentadoria compulsória”, argumentou a secretaria.
Previdência mudada só pelo governo
A própria PEC enviada ao Congresso argumenta que a retirada da maioria das regras previdenciárias da Constituição segue uma tendência global. Segundo o texto, o Brasil ficaria de acordo com “práticas internacionais, que não estabelecem o regramento previdenciário como matéria exclusivamente constitucional”.
Judicialização da saúde
A secretaria afirmou que é um “erro de interpretação” dizer que a alteração no artigo 195 da Constituição tem algum efeito na obtenção de remédios. “A judicialização da saúde é um problema cuja solução não passa pelo ajuste proposto. O direito à saúde está disciplinado no artigo 196, e é nesse artigo que o tema tem de ser tratado”, disse. O órgão garantiu que a PEC “não vai limitar o acesso dos segurados à Justiça para questionar o direito ao seu benefício”.
Demais itens têm a ver com Previdência, diz governo
Sobre as mudanças no abono do PIS e a troca do foro nos processos por acidente de trabalho, o governo argumentou que são itens que “têm relação com questões previdenciárias”.