A era da carteira de trabalho canarinha; por Maria Cristina Fernandes

 

Por Maria Cristina Fernandes, publicado no jornal Valor Econômico

Esqueça as notícias falsas. A carteira de trabalho verde e amarela é o melhor truque da vitória de Jair Bolsonaro. Não é produto de robôs delirantes, não teve centralidade na campanha nem se tornou palavra de ordem dos bolsominions. Mas está à altura da desventura do que está por vir.

O documento foi apresentado na campanha como um divisor de águas no mundo do trabalho. De um lado estariam os detentores da carteira azul que queiram preservar os direitos previstos na Consolidação das Leis do Trabalho, ainda que sob o risco de perderem seus empregos. Do outro, os brasileiros que aceitem mitigar direitos em contratos individuais com seus empregadores.

Se o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi o pai dos pobres redivivo, com suas políticas compensatórias e de formalização do trabalho, Bolsonaro dá um passo degrau abaixo. Busca capturar a massa de desvalidos jogando-os contra aqueles que detêm direitos trabalhistas. Um exemplo disso é a proposta de 13º salário para o Bolsa Família às custas do abono salarial. A luta de classes bolsonarista está concentrada na parte de baixo da pirâmide. A carteira verde-amarela é o manto destinado a proteger seu exército de precarizados.

Num programa de governo de oito mil palavras, o capítulo do trabalho somou 112. Lá estão a carteira canarinho, a prevalência de acordos individuais com empregadores sobre a CLT, ressalvadas as garantias constitucionais, a permissão para que um metalúrgico escolha o sindicato dos bancários para se filiar (fim da unicidade sindical) e a barreira contra a volta do imposto sindical.

Entre os direitos constitucionalizados estão o salário mínimo, o seguro-desemprego, o repouso semanal remunerado, o 13º, o FGTS e a aposentadoria. A reforma trabalhista não alterou a Carta mas deu flexibilidade à negociação de jornadas de trabalho e encargos e restringiu o acesso à Justiça do Trabalho.

Ao longo da campanha, Bolsonaro evitou explicitar que direitos poderiam vir a ser mitigados. Limitou-se a informar que o trabalhador vai ter que escolher “se quer mais direito e menos emprego ou menos direito e mais emprego”. A retórica binária funcionou ou, pelo menos, não foi ameaçadora o suficiente para prejudicá-lo.

Bolsonaro não foi eleito porque prometeu tirar direitos. Mas só conseguiu o mandato porque há um gigantesco contingente deles desprovido. Informais, trabalhadores por conta própria sem CNPJ e desempregados somam 51,9 milhões de brasileiros, quase a totalidade (57 milhões) da votação do presidente eleito. Foi a desesperança que venceu o medo. Os robôs das redes sociais só foram capazes de produzir espirais delirantes porque encontraram escancarada esta porteira real.

O delator da Cambridge Analytics, Christopher Wylie, um dia resumiu Steve Bannon, seu antigo patrão, ex-marqueteiro da vitória de Donald Trump e guru do bolsonarismo, como alguém obcecado em mudar a cabeça das pessoas. No Brasil, quem fez a cabeça da maioria petista que se transportou para o bolsonarismo não foram as redes sociais mas os anos continuados de recessão e a frustração.

A ameaça ao décimo 13º salário permaneceu mais ou menos inócua à campanha porque 13 milhões permanecem desempregados depois da reforma trabalhista que prometia brotar empregos. Os 13 do PT até que rimavam com o enredo, mas não se mostraram uma solução.

A militância de Bolsonaro contra a incorporação dos empregados domésticos à CLT também se mostrou inócua porque a campanha transcorreu num momento em que grandes contingentes de mulheres que deixaram os quartinhos dos fundos para se aventurar no telemarketing ou no balcão de lojas perdeu o emprego. Não conseguem nem mesmo voltar aos quartinhos porque a legislação que tentou tirar o Brasil do século XIX impediu uma classe média estrangulada de recontratar seus serviços.

Do quinto andar de seu prédio no bairro carioca de Botafogo, Wanderley Guilherme dos Santos enxergou uma parte da floresta. Um mês antes do segundo turno publicou artigo (bit.ly/2CU33Fh) em que tenta explicar como o desarranjo trabalhista levou a 2018 e não vai acabar com a eleição.

Diz que a vitória do PT, no limite, poria em curso iniciativas compensatórias para os desvalidos de sempre e incapazes de evitar a obsolescência da sociedade frente à automação. Seria uma coalizão defensiva da ordem decadente despreparada para reagir ao que chama de quarta revolução industrial. Ainda estaria moldada na era industrial clássica e desconectada da tecnologia que permitiu o manejo de gigantescas bases de dados e provocou uma ruptura com os corolários da organização do trabalho.

O partido se viu desarmado pelo que o fundador do Fórum Econômico Mundial, Karl Schwab, um dia descreveu como um arco-íris de prosperidade, com o trabalhador, enfim, apto a desfrutar de plena autonomia e liberdade para se dedicar às tarefas num dia e pescar no outro desde que seu currículo esteja disponível numa nuvem a fim de ser recrutado para serviços definidos sem obrigações posteriores entre prestador e contratante.

Nem todos os engarrafadores de nuvem da nova era são tão utópicos. Inexoráveis, as inovações tecnológicas também se destinam a levar as empresas a prescindir do trabalho. Não ameaçam apenas as ocupações de baixa qualificação como também os serviços mais sofisticados e inspiraram autores como Thomas Piketty a mostrar como o dinheiro, hoje, faz dinheiro mais rapidamente do que pessoas e empresas conseguem criar valor.

Jair Bolsonaro venceu a eleição porque surfou nessa onda de desorientação. A carteira de trabalho tupiniquim do bolsonarismo é a inclusão pela capitulação. Nenhum deles é tão relevante quanto a experiência alemã. Há um século, o comunismo foi barrado por lá com a ampliação de benefícios sociais, em grande parte, via sindicalização. A saída para incorporar migrantes sem quebrar o pacto entre sindicatos e empresas foi excluí-los. Seus contratos são regidos por regras mais estreitas e menos benevolentes.

Os percalços dessa trajetória já fizeram pipocar extremismos na Áustria e na Hungria e acaba de desencantar da política a chanceler alemã, Angela Merkel, governante que equilibrou, como poucos, as bandejas desse caótico cardápio da automação excludente na resistência aos extremismos do continente.

No Brasil, ressalvada a selvageria contra os venezuelanos num dos Estados (RR) que deu maior vantagem a Jair Bolsonaro, é majoritariamente contra sua própria gente que se insurge a nova ordem da quarta revolução industrial. Ao pintar de verde e amarelo a nova carteira de trabalho, o presidente eleito sinaliza que é sob o manto da proteção pátria que se dará o expurgo de direitos.

Como o Brasil está acima, tudo vai ficar bem. Quem se insurge contra esta ordem deve ser expatriado porque resiste a dar o ouro, ou melhor, seus direitos, pelo Brasil. Ao contrário do que acontece na Europa, o país ingressa no século XXI sem sequer ter saído inteiramente do XIX.

A coalizão vencedora, no entanto, não se limitará a premiar ianomamis que entregararem suas terras com subempregos e iPhones de penúltima geração. Bolsonaro acena com o ensino à distância numa mão e leis antiterroristas na outra contra professores que oferecerem resistência. Terá, à sua disposição, um embate com efeito demonstração para conter novas insurgências contra a entrada a galope do Brasil na quarta revolução industrial. Vai engrossar esse caldo com a liberação das armas e a cruzada em defesa da família e da propriedade.

O presidente eleito já inclui os insurgentes entre aqueles que chamou de vítimas do coitadismo, variação, em torno do mesmo tema, da indolência tupiniquim, de que fala seu vice. Se a carteira verde-amarela não der conta dos 13 milhões de desempregados não faltará mercado de trabalho nas milícias que a liberação de armas fará proliferar no país.

O consultor João Guilherme Vargas Neto, que já sabia ler quando Getúlio Vargas começou a colocar essas massas em circulação na política, não ficou impressionado com a exibição do livro de Winston Churchill com a qual o presidente eleito buscar refutar a associação com o fascismo. Prefere se fiar na sucessora do velho primeiro-ministro inglês que assumiu o poder para promover o desmonte das conquistas sociais do pós-guerra. Para Margareth Thatcher, não havia sociedade, apenas famílias e indivíduos.

Se bem-sucedido, o presidente eleito arrisca-se a conquistar a cidadela mais fiel do petismo, a população que ganha até um salário mínimo e aquela que não concluiu o ensino fundamental. Cumpriria, assim, trajetória paralela à de Lula, que foi eleito pelos nutridos e pensantes e terminou no colo dos desvalidos. No muro que pretende erguer entre os carteiras azuis, de um lado, e aqueles que serão portadores da verde-amarela, de outro, está novamente embutida a ideia do “nós contra eles” do petismo.

São quase nulas as chances de categorias sindicalizadas abrirem mão de planos de saúde em seus acordos coletivos em nome do fortalecimento da saúde pública. Dois dos candidatos à Presidência (Bolsonaro e Ciro Gomes) que estiveram sob cuidados médicos durante a campanha se renderam às grifes da rede hospitalar privada. A atitude caberia ao coletivo, mas a era Bolsonaro chegou para tirar esta palavra de circulação.

Maria Cristina Fernandes, jornalista do Valor Econômico

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